quinta-feira, dezembro 05, 2013

Celibato eclesiástico – história e fundamentos teológicos (I)


O Cardeal Salesiano Alfons M. Stickler, nascido em 23 de Agosto de 1910, em Neunkirchen, arquidiocese de Viena, Austria, e falecido na Cidade do Vaticano, em 12 de Dezembro de 2007, que foi Bibliotecário e Arquivista da Santa Igreja Romana, (e que tive o gosto de ouvir, nos anos 80, numa conferência em Roma, promovida pelo CRIS – Centro Romano di Incontri Sacerdotali), publicou em 1993 um importante estudo sobre o celibato sacerdotal: Der Klerikerzölibat. Seine Entwicklungsgeschichte und seine theologischen Grundlagen, Kral-Verlag, Abensberg, de que estão disponíveis as seguintes traduções: 
  • E também portuguesa: Celibato eclesiástico – história e fundamentos teológicos, disponível no excelente site brasileiro Presbíteros (tradução do Pe. Anderson Alves). 
É este texto que irei publicar em três partes (depois de alguns retoques para ser mais legível em português de Portugal). Trata-se um precioso texto, denso e longo, mas que merece ser lido e estudado.



I. INTRODUÇÃO

No debate sobre o celibato dos ministros da Igreja Católica, que regressa de novo e que se tem intensificado nos últimos tempos, encontramos as mais variadas opiniões, especialmente no que se refere à sua origem e desenvolvimento na Igreja Ocidental e Oriental. Essas opiniões vão desde a convicção de sua origem divina até da que se trata – especialmente no caso da disciplina, mais restrita, da Igreja latina – de uma mera instituição eclesiástica. Da disciplina da Igreja Latina, se afirma frequentemente que a obrigatoriedade do celibato só poderia ser constatada desde o século IV em diante; para outros, ela foi adoptada no início do segundo milénio, concretamente a partir do II Concilio de Latrão em 1139.
Essas opiniões tão distantes entre si e as razões e as premissas que se alegam para sustentá-las, permitem constatar a existência de uma significativa imprecisão no conhecimento dos factos e das disciplinas eclesiásticas a esse respeito, e ainda mais sobre os motivos do celibato eclesiástico. Esta imprecisão é verificada inclusive em algumas declarações no ambiente eclesiástico.
Parece, pois, necessário para alcançar um conhecimento seguro desta tão criticada Instituição, esclarecer os factos e as disposições da Igreja, desde o início até hoje, e analisar os seus fundamentos teológicos. É evidente que este objectivo, se quisermos que a nossa exposição tenha validade científica, só será alcançado a partir de um conhecimento actualizado das fontes e da bibliografia sobre a questão.
Neste sentido, convém notar que, nos últimos tempos, foram alcançados importantes resultados sobre a história do celibato eclesiástico, no Ocidente e no Oriente. Mas tais resultados ou ainda não entraram na consciência geral, ou são silenciados, pois se considera que poderiam influenciar de uma forma não desejada essa mesma consciência.
Esta exposição sintética irá acompanhada de um dispositivo científico que se limita ao essencial e que permite, junto ao controlo das afirmações feitas, um eventual aprofundamento posterior no seu conteúdo.
A descrição da evolução histórica da questão, tanto na Igreja ocidental como na oriental, irá precedida de uma parte na qual, acima de tudo, se fará um esclarecimento do conceito de celibato eclesiástico que está na base das obrigações que impõe, para em seguida indicar o método exigido para chegar – numa adequada apreciação do tema – a conclusões seguras. A última parte será dedicada às bases ou fundamentos teológicos do celibato, cujo desenvolvimento é cada vez mais necessário.

II. CONCEITO E MÉTODO

Significado do conceito do celibato: a continência
A primeira e mais importante premissa para conhecer o desenvolvimento histórico de qualquer instituição é a identificação do verdadeiro significado dos conceitos sobre os quais se baseia. No caso do celibato eclesiástico, foi oferecida de maneira clara e concisa por um dos maiores decretistas: Uguccio dePisa, que, na sua conhecida Summa, composta aproximadamente em 1190, inicia o comentário ao tratado do celibato com estas palavras: “No início desta distinção, começa (Graciano) para tratar especialmente da continentia clericorum [continência dos clérigos], ou seja, a que devem observar non contrahendo matrimonio et in non utendo contracto [não contraindo matrimónio, e em não o devendo usar, se contraído] (Dist. XXVII, dist. introd. ad. v. Quod autem).
Nestas palavras é mencionada, com a clareza desejável, uma dupla obrigação: a de não se casar e a de não usar de um casamento previamente contraído. Isto mostra que naquela época, ou seja, no final do século XII, ainda havia clérigos maiores que se tinham casado antes de receber a sagrada Ordenação.
A própria Sagrada Escritura nos mostra que a Ordenação de homens casados foi, de facto, uma coisa normal, porque S. Paulo escreve aos seus discípulos Timóteo e Tito que tais candidatos deveriam ter-se casado uma só vez (1 Tim 3, 2 12; Tit 1, 6.). Sabemos que pelo menos S. Pedro esteve casado, e talvez houvesse outros Apóstolos casados, pois o próprio Pedro disse ao Mestre: “Nós deixamos tudo e te seguimos. Qual será nosso futuro?” E Jesus, na sua resposta, disse: “Em verdade vos digo que ninguém que tenha deixado casa, pais, irmãos, esposa ou filhos pelo reino de Deus deixará de receber muito mais no mundo presente e a vida eterna no mundo futuro” (Lc 18, 28-30; Mt 19, 27-30; Mc 10, 20-21).
Aparece já aqui a primeira obrigação do celibato eclesiástico, isto é, a continência de todo o uso do matrimónio posteriormente à Ordenação sacerdotal, da qual decorre tal obrigação. Nisto consiste realmente o significado do celibato, hoje quase esquecido, mas claro para todos durante o primeiro milénio, inclusive antes: a absoluta continência, incluindo a permitida (inclusive devida) por ser própria do matrimónio.
De facto, em todas as primeiras leis escritas sobre o celibato – conforme mostraremos por documentos na segunda parte – fala-se da proibição de gerar filhos depois da Ordenação. Este facto demonstra que esta obrigação devia ser fortemente exigida para o grande número de clérigos anteriormente casados, e que a proibição do casamento tinha no início uma importância secundária. Esta última só passou para o primeiro plano, quando a Igreja começou a preferir e, em seguida, a impor candidatos celibatários, de entre os quais eram escolhidos quase exclusivamente ou na totalidade os aspirantes às Sagradas Ordens.
Para concluir este primeiro esboço do significado do celibato eclesiástico, que foi chamado desde o início, com propriedade, “continência”, é preciso esclarecer, rapidamente, que os candidatos casados podiam ser ordenados e renunciar à utilização do matrimónio apenas com o consentimento da sua esposa, já que ela, por força do sacramento recebido, possuía um direito inalienável ao uso do casamento contraído e consumado, que é indissolúvel. O conjunto de questões derivadas de tal renúncia será tratado na segunda parte.
Orientações para a investigação sobre a origem e desenvolvimento do celibato eclesiástico
O segundo pressuposto para alcançar um conhecimento correcto da origem e do desenvolvimento do celibato eclesiástico – ao que podemos chamar simplesmente “continência” sexual, uma vez esclarecido o seu significado – é tanto mais importante quanto melhor advertimos a variedade de opiniões sobre a origem e primeiro desenvolvimento da obrigação de continência, e pode ser explicado pelo facto de o método justo de investigar e expor a questão não ser observado.
Deve-se notar aqui que, em geral, cada campo científico tem a sua própria autonomia em relação aos demais, com base no seu objecto próprio e no método postulado por ele. É verdade que na investigação científica sobre ciências relacionadas existem regras comuns que devem ser observadas. Por exemplo, numa investigação de carácter histórico não se pode prescindir da regra que prescreve uma crítica preliminar das fontes, que determine a autenticidade e a integridade dessas, para se ocupar depois do seu valor intrínseco sobre essa base, ou seja, sobre sua credibilidade e valor demonstrativo.
Neste contexto, é absolutamente necessária a capacidade e a vontade de compreender e utilizar adequadamente documentos e o seu conteúdo. Somente sobre esta base segura – autenticidade, integridade, credibilidade e valor – se pode desenvolver uma adequada hermenêutica ou interpretação das fontes.
Junto a estes pressupostos metodológicos gerais, é necessário também aplicar a metodologia especificamente requerida por cada ciência. A Historiografia Filosófica competente, por exemplo, exige um conhecimento adequado da Filosofia, bem como a Historiografia Teológica pressupõe o conhecimento da Teologia e a Historiografia da Medicina ou da Matemática requerem um conhecimento suficiente dessas ciências. Do mesmo modo, na Historiografia Jurídica não pode faltar o conhecimento do Direito e das suas exigências metodológicas próprias.
De acordo com o dito, deve-se ter em conta que a história do celibato eclesiástico implica, em seu conteúdo e desenvolvimento, o Direito e a Teologia da Igreja. Por isso, se quisermos fazer uma boa hermenêutica dos testemunhos históricos (fatos e documentos), não se pode prescindir do método próprio do Direito Canónico e da Teologia. O significado e a necessidade dessas observações, que à primeira vista podem parecer abstractas, serão evidentes ao aplicá-las de modo concreto à questão que agora estudamos.
Raízes do recente debate sobre as origens do celibato
No final do século XIX, tivemos uma áspera discussão sobre a origem do celibato eclesiástico, ainda recordada e influente. Gustav Bickell, filho de um jurista e ele mesmo orientalista, atribuía a origem do celibato a uma disposição apostólica, apoiando-se principalmente em testemunhos orientais. Respondeu-lhe Franz X. Funk, conhecido estudioso da história eclesiástica antiga, negando que se pudesse fazer tal afirmação, já que a primeira lei conhecida sobre o celibato remonta ao início do quarto século. Depois de um duplo confronto de escritos sobre o assunto, Bickell fez silêncio, enquanto Funk repetia uma vez mais, sinteticamente, os seus resultados, sem receber uma resposta do seu adversário. Recebeu, pelo contrário, importante consenso de dois grandes estudiosos, como eram E. F. Vacandard e H. Leclercq. A autoridade e influência de suas opiniões, difundidas amplamente pelos meios de difusão (dicionários), concederam à tese de Funk um consenso considerável, que perdura até hoje.
Considerando o que acabamos de dizer sobre as premissas dos princípios metodológicos na investigação, deve-se notar que F. X. Funk, ao formular as suas conclusões, não levou em conta, sobretudo, os critérios gerais de interpretação das fontes, o que num estudioso altamente qualificado, como ele sem dúvida era, é realmente estranho. Aceitou como bom, e a utilizou como um dos seus principais argumentos contra a opinião de Bickell, a narração espúria sobre a intervenção do bispo e monge egípcio Pafnúcio no Concílio de Nicéia em 325. E isso, ao contrário da crítica básica externa das fontes que, já antes dele, tinha afirmado repetidamente a não autenticidade desse episódio (o que está comprovado, como demonstraremos ao falar, na quarta parte, do Concílio de Niceia). Funk cometeu um erro metodológico ainda maior, embora menos culpável, ao aceitar apenas só a existência de uma obrigação oficial do celibato, que tenha sido expressa através de uma lei escrita. O mesmo se pode dizer do historiador da teologia, Vacandard, e do historiador dos concílios, Leclercq.
A transmissão oral do direito
Qualquer historiador do direito sabe que um dos teóricos com mais autoridade do século XX, Hans Kelsen, disse explicitamente que é equivocada a identificação entre direito e lei, ius et lex. Direito (ius) é toda norma jurídica obrigatória, tanto se foi dada oralmente e através do costume, como se já foi expressa por escrito. Lei (lex) é, no entanto, toda disposição dada por escrito e promulgada de forma legítima.
Uma peculiaridade típica da lei, testemunhada durante toda a sua história, está na origem dos ordenamentos a partir das tradições orais e da transmissão de normas consuetudinárias que lentamente são postas por escrito. Por exemplo, os romanos, expressão do génio jurídico mais perfeito, somente depois de séculos tiveram a lei escrita das Doze Tábuas, por razões sociológicas. Todos os povos germânicos escreveram os seus ordenamentos jurídicos populares e consuetudinários depois de muitos séculos desde a sua existência. O direito desses povos era, até então, não escrito e só eram transmitidos oralmente. Ninguém se atreveria a afirmar, contudo, que por isso tal ius não fosse obrigatório e que sua observância estivesse deixada ao livre arbítrio de cada indivíduo.
Como em qualquer ordenamento jurídico próprio de grandes comunidades, o da jovem da Igreja consistiu, em grande medida, nas disposições e obrigações transmitidas apenas oralmente; ainda mais quando – durante os três séculos de perseguição (embora intermitente) – dificilmente poderiam ter sido fixadas as leis por escrito. De qualquer maneira, a Igreja possuía, já por escrito, alguns elementos de direito primitivo, e em maior medida de que outras sociedades jovens. Uma prova disso nos dá a Sagrada Escritura. São Paulo escreve, na verdade, em sua segunda carta aos Tessalonicenses (2, 15) estas palavras: “Exorto-vos, pois, irmãos, ficai firmes e guardai as tradições que haveis aprendido, tanto oralmente, tanto através de nossas Cartas”.
Estes referem-se, sem dúvida, a disposições obrigatórias expedidas não apenas por escrito, como foi expressamente afirmado, mas também ensinadas apenas oralmente e assim transmitidas. Então, quem somente admitisse como disposições obrigatórias as que podem ser encontradas nas leis escritas, não estaria a fazer justiça ao método de conhecimento próprio da história dos ordenamentos jurídicos.
Os postulados do dado teológico
O método apropriado para estudar os fundamentos teológicos da continência do clero deve ter em conta que, além de questões disciplinares e jurídicas, a continência também está ligada, no caso deles, a um carisma intimamente relacionado com a Igreja e com Cristo. Seu conhecimento e análise só podem ser feitos, consequentemente, à luz da revelação e da elaboração teológica.
Como é agora bem conhecido, a Teologia medieval não se preocupou muito com questões jurídicas e disciplinares, nem o fez do modo mais apropriado, mas se apropriou das discussões e das conclusões da canonística clássica – também chamada de “glosadores” – então muito florescente. Os historiadores da Teologia Medieval constataram isso há bastante tempo, e, um olhar para a obra do príncipe da Escolástica Medieval, confirma-o suficientemente. Esta realidade pode ser considerada também como a principal razão de que a continência do clero não foi tratada suficientemente, quer dizer, conforme a sua metodologia fundada na Revelação e nas suas fontes. Embora esta falta tenha sido já reparada em grande medida, hoje continua sendo necessário um maior aprofundamento nos fundamentos propriamente teológicos do nosso tema. Na última parte deste trabalho, procuraremos atender a essa exigência tão legítima.

 III. DESENVOLVIMENTO DO TEMA DA continência na IGREJA Latina

Afirmados os pressupostos necessários sobre o conceito e o método de investigação e exposição, analisaremos em primeiro lugar o tema da continência dos clérigos na Igreja Latina.
O Concílio de Elvira
Entre os testemunhos de diversos tipos que interessam para o nosso assunto, deve ser mencionado, em primeiro lugar, o Concílio de Elvira. Na primeira década do século IV, reuniram-se bispos e sacerdotes da Igreja da Espanha, no centro diocesano de Elvira, perto da Granada, para colocar sob uma regulamentação comum as diversas circunscrições eclesiásticas da Espanha, pertencente à parte ocidental do Império Romano, que gozava, sob o governo do Imperador Constâncio, de uma paz religiosa relativamente boa. No período anterior, durante a perseguição dos cristãos, haviam-se constatado abusos em mais de um sector da vida cristã e que tinha sofrido danos sérios na observância da disciplina eclesiástica. Em 81 cânones conciliares, são emanadas disposições relativas às áreas mais importantes da vida eclesiástica, necessitadas de clarificação e de renovação para reafirmar a antiga disciplina e para sancionar novas normas que se tinham tornado desnecessárias.
O Cânon 33 do Concílio contém a já conhecida primeira lei sobre o celibato. Sob a rubrica: “Sobre os bispos e ministros (do altar), que devem ser continentes com suas esposas”, encontra-se o seguinte texto dispositivo: 
“Está-se de acordo sobre a proibição total, válida para bispos, sacerdotes e diáconos, ou seja, para todos os clérigos dedicados ao serviço do altar, que devem abster-se de suas esposas e não gerar filhos; quem fizer isso deve ser excluído do estado clerical”. 
O cânon 27 já havia insistido na proibição de que habitassem com os bispos e outros eclesiásticos,  mulheres não pertencentes à sua família. Só poderiam levar para junto de si, uma irmã ou uma filha consagrada virgem, mas de nenhum modo uma estranha (H. T. BRUN'S,Canones Apostolorum et Conciliorum saec. IV- VII, II Berolini, 1939, 5-6)..
Desses primeiros e importantes textos legais se devem deduzir que muitos dos clérigos maiores da Igreja espanhola de então, talvez inclusive a maior parte, eram viri probati, quer dizer, homens casados antes de serem ordenados como diáconos, sacerdotes ou bispos. Todos, entretanto, estavam obrigados depois de ter recebido a Sagrada Ordenação a renunciar completamente do uso do matrimónio, quer dizer, à observância de uma perfeita continência. À luz do final do Concilio de Elvira, assim como do Direito e da História do Direito do Império Romano, dotado de uma cultura jurídica que dominava naquela época também na Espanha, não é possível ver no cânon 33 (juntamente com o cânon 27) uma lei nova. Manifesta-se claramente, ao contrário, como uma reacção contra a inobservância, muito estendida, de uma obrigação tradicional e bem conhecida, a que se acrescenta, nesse momento, uma sanção: ou se aceita o cumprimento da obrigação assumida, ou se renuncia ao estado clerical. A introdução de uma novidade nesse terreno, com retroactividade geral das sanções frente a direitos adquiridos desde a Ordenação, teria causado, num mundo como aquele, tão imbuído do respeito ao legal, uma verdadeira tempestade de protestos ante a evidente violação de um direito. Isto já o havia percebido Pio XI quando, na sua Encíclica sobre o sacerdócio, afirmou que essa lei escrita supunha uma práxis precedente (AAS 28/1936, 25).

A consciência da tradição do celibato nos Concílios africanos
Após a importante lei de Elvira, deve ser considerada outra ainda mais importante para o nosso tema, e voltaremos a encontrá-la em breve como ponto-chave de referência. Trata-se de uma declaração vinculante, formulada no segundo Concílio Africano do ano 390 e repetida nos posteriores, que será posteriormente incluída no Código dos Cânones das Igrejas Africanas (e nos cânones in causa Apiarii), formalizada no importante Concílio do ano 419. Sob o título: “que a castidade dos sacerdotes e levitas deve ser protegida”, o texto afirma: 
“O bispo Epigónio disse: de acordo com aquilo que o anterior Concílio afirmou sobre a continência e sobre a castidade, os três graus que estão ligados pela Ordenação a uma determinada obrigação de castidade, ou seja, bispos, sacerdotes e diáconos – devem ser instruídos de uma forma mais completa sobre o seu cumprimento. O bispo Genetlio continuou: como já mencionado, convém que os sagrados bispos, os sacerdotes de Deus e os levitas, ou seja, aqueles que servem nos divinos sacramentos, sejam continentes por completo, para que possam obter sem dificuldades o que pedem ao Senhor; para que também protejamos o que os Apóstolos ensinaram e é conservado desde antigamente”. “A isso os bispos responderam unanimemente: estamos todos de acordo que bispos, sacerdotes e diáconos, guardiães da castidade, se abstenham também de suas esposas, a fim de que em tudo e por parte de todos os que sirvam ao altar seja conservada a castidade” (Concilia Africae a. 345-525, Ed. C. MUNIER en Corpus Christianorum, Series Latina 149, Turnholti 1974, 13).
Dessa declaração dos Concílios de Cartago resulta que também na Igreja Africana uma grande parte, talvez a maioria, do clero maior, estava casada antes da ordenação, e que depois dela, todos deviam viver em continência. Aqui esta obrigação é atribuída explicitamente ao sacramento da Ordem recebida e ao serviço do altar. Também é posta em relação explícita com um ensinamento dos Apóstolos e com uma observância praticada em todo o tempo passado (antiquitas), e conclui-se com o assentimento unânime de todo o episcopado africano.
Devido a uma disputa com Roma, que também foi abordada nessas assembleias conciliares africanas, podemos conhecer em que medida foram conhecidas e vividas naquela Igreja, as tradições da Igreja antiga.
O sacerdote Apiário foi excomungado pelo seu bispo. Apelou para Roma, que aceitou o recurso por referência a algum cânon de Niceia que autorizaria tais recursos. Os bispos africanos declararam-se solidários com seu companheiro, afirmando que não conheciam tal cânon niceno. Em diversas reuniões destes bispos, nas quais também participaram delegados de Roma, discutiu-se esse problema e ainda se conservam os cânones in causa Apiarii (ibidem, 98 ss.).
A sessão principal dedicada a esta questão, que teve lugar em 25 de Maio de 419, foi presidida por Aurélio, bispo de Cartago. Participavam o legado de Roma, Faustino de Fermo, com dois presbíteros romanos, Felipe e Acélio, além de 240 bispos africanos entre os quais estava Santo Agostinho de Hipona e Alípio de Tagaste. O Presidente introduziu o debate com estas palavras: “Temos, diante de nós, os exemplares das disposições que nossos Padres trouxeram de Niceia. Nós as conservamos em sua forma original e guardamos também os sucessivos decretos subscritos por nós”. Depois recitaram o Símbolo da fé na Santíssima Trindade, pronunciado por todos os Padres conciliares.
Em terceiro lugar foi repetido o texto sobre a continência dos clérigos do Concílio de 390, a que já aludimos, que então tinha sido recitado por Epigónio e Genetlio, e que agora era pronunciado por Aurélio. O legado papal, Faustino, sob a rubrica “dos graus da Ordem Sagrada que devem abster-se de suas esposas”, acrescentou: “estamos de acordo que os bispos, sacerdotes e diáconos, quer dizer, todos os que tocam os Sacramentos como guardiões da castidade, devem abster-se de suas esposas”. A isso responderam todos os bispos: “estamos de acordo que a castidade deve ser guardada em tudo e por todos os que servem ao altar”.
Entre as normas que, tomadas do património tradicional da Igreja Africana, foram em seguida relidas ou novamente decididas, encontra-se um texto do presidente Aurélio: 
“Nós, queridos irmãos, acrescentamos também que em relação ao que foi dito da incontinência de alguns clérigos, que eram somente leitores, com suas próprias esposas, se decidiu o que também noutros Concílios foi confirmado: que os subdiáconos, que tocam os santos mistérios, e os diáconos, sacerdotes e bispos devem, segundo as normas vigentes para eles, abster-se da própria esposa e comportar-se como se não a tivessem; e se não se ativerem a isso, devem ser afastados do serviço eclesiástico. Os demais clérigos não estão obrigados até uma idade mais madura. Depois disso, todo o Concílio respondeu: nós confirmamos tudo o que Vossa Santidade disse de maneira justa, e é santo e agradável a Deus”.
Recolhemos aqui com tanto detalhe esse testemunho da Igreja Africana do final do século IV e do começo do século V por causa de sua fundamental importância. Desses textos se deduz a clara consciência de uma tradição baseada não somente numa persuasão geral, que ninguém punha em questão, mas também em documentos bem conservados. Naqueles anos foram encontradas ainda no arquivo da Igreja Africana, as actas originais que os Padres tinham trazido do Concílio de Niceia. Se houvesse disposições contrárias ao celibato eclesiástico tal e como o vemos afirmado, tinham sido mencionadas da mesma forma que sucedeu com o erro ou o descuido da Igreja Romana a respeito dos cânones de Sárdica atribuídos a Niceia.
Tudo isso mostra também a consciência de uma tradição comum da Igreja Universal, cujas diversas partes guardam uma comunhão viva entre si. O que na Igreja Africana foi afirmado muito explícita e repetidamente sobre a origem apostólica e a observância transmitida desde a Antiguidade da continência dos eclesiásticos juntamente com as sanções aos que lhe desobedecessem, não teria sido certamente aceito de modo tão geral e pacífico, se não houvesse tido o aval de ser um facto comummente conhecido. Sobre isso temos ainda testemunhos explícitos da Igreja Oriental, que teremos oportunidade de analisar.

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