sábado, junho 13, 2015

Santo António, a mula e o Santíssimo Sacramento

Padre António Vieira


SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO 


No Domingo infra-octavam do Corpus Christi, 
com o Santíssimo Sacramento exposto, 
em S. Luís do Maranhão, ano de 1653



(…) Disputando Santo António com um herege obstinado sobre a verdade do Sacramento, depois que não valeram razões, Escrituras, nem argumentos contra a sua obstinação, veio a um partido, que todos sabeis: que ele fecharia a sua mula três dias sem lhe dar de comer, que ao cabo deles a traria à presença de Santo António, quando estivesse com a Hóstia nas mãos, e que, se aquele animal assim faminto deixasse de se arremessar ao comer que ele lhe oferecesse, por adorar e reverenciar a Hóstia, ele então creria que estava nela o corpo de Cristo. Assim o propôs obstinadamente o herege, e assim o aceitou Santo António, não só sobre todas as leis da razão, senão ainda parece que contra elas. O mistério da Eucaristia distingue-se de todos os outros mistérios que confessamos em ser ele por antonomásia o mistério da Fé. Os brutos distinguem-se dos homens em que os homens governam-se pelo entendimento, e os brutos pelos sentidos. Pois, se o Santíssimo Sacramento é o mistério da fé, como deixa Santo António prova dele no testemunho de um animal que se governa só pelos sentidos? Porque era Santo António. Antes de Santo António vir ao mundo, era o Santíssimo Sacramento mistério só da fé, e só podia testemunhar nele entendimento; mas, depois de Santo António vir ao mundo, ficou o Sacramento mistério também dos sentidos, e por isso podiam já os sentidos dar testemunho nele: bem se viu nos mesmos dois sentidos de gostar e ver.
Amanheceu o dia aprazado, veio a mula faminta, e após dela toda a cidade de Tolosa, assim católicos como hereges, para ver o sucesso. Posto o bruto à porta da igreja, aparece Santo António com a Hóstia consagrada nas mãos, e o herege, com os manjares do campo, naturais daquele animal, que tinha prevenidos. Mas, oh! poder da divindade e omnipotência! Por mais que o herege aplicava o comer aos olhos e à boca do bruto, ele, como se fora racional, dobrou os pés, dobrou as mãos, e, metendo entre elas a cabeça, com as orelhas baixas, esteve prostrado e ajoelhado por terra, adorando e reverenciando a seu Criador. Vede se dizia eu bem que Santo António é o sal e a luz da mesa do Santíssimo Sacramento, e sal para o sentido do gosto, e luz para o sentido da vista. O herege tentava aquele animal pelo sentido da vista e pelo sentido do gosto: pelo sentido da vista, pondo-lhe o comer diante dos olhos; e pelo sentido do gosto, quase metendo-lhe o comer na boca. Mas aqueles dois sentidos, posto que irracionais, estavam tão suspensos e tão satisfeitos no manjar divino, que tinham presente: o sentido do gosto com tal sabor, e o sentido da vista com tal luz, que nem quis ver com os olhos, nem tocar com a boca, o comer que o herege lhe oferecia. Confessando, porém, a mesma boca e os mesmos olhos, confessando o mesmo sentido de gostar e o mesmo sentido de ver, a verdade e presença real de Cristo no Sacramento. Julgai agora se é já o Sacramento mistério dos sentidos. Até agora dizia a Igreja: Praestet fides supplementum sensuum defectui: Supra a fé o que falta aos sentidos  – mas, à vista de Santo António, mude o hino, e diga: Praestet sensus supplementum filei defectui: Supram os sentidos o que faltar à fé – porque a fé, que faltou ao herege, a supriram os sentidos do animal. O gosto, saboreado naquele sal: Vos estis sal –  a vista, alumiada por aquela luz: Vos estis lux.
 
Fonte da gravura: ver aqui
Oh! que grande passo este para parar aqui o sermão à vista deste bruto e deste herege! À vista deste herege, que dirá quem tem nome de católico? À vista deste bruto, que dirá quem tem o nome de homem? A reverência do bruto e a irreverência do herege, tudo é confusão nossa. O bruto venera sem conhecer, o herege não venera porque não conhece. Se o bruto venera o Santíssimo Sacramento sem conhecer, eu, que sou homem racional, que conheço, por que tenho tão pouca reverência? Se o here­ge não venera porque não conhece, e porque não crê, eu, que creio, e que conheço, porque tenho tão pouca reverência? Ah! Portugal! Ah! Espanha! que por este pecado te castiga Deus. Quem viu os templos dos hereges, e o silêncio e respeito que neles se guarda, pode chorar mais esta miséria. Nos templos dos hereges, ainda que exterior, há reverência, e falta o Sacramento; nos templos de muitos católicos há o Sacramento, e falta a reverência. Vede qual é maior infelicidade! Os dois sentidos que no bruto mos­traram maior reverência são os que em nós mostram maior devassidão. Os olhos, onde está o sentido do ver, a língua, onde está o sentido do gostar, que é o que fazem na presença do Santíssimo Sacramento? Que é o que falam aquelas línguas sacrílegas, quando deveriam venerar aquele Sacramento com a oração e com o silêncio? Que é o que olham, e para onde, aqueles olhos inquietos e loucos, quando deveram estar enle­vados naquela Hóstia de amor, ou pregados na terra, de modéstia e de confusão. Que fazeis, ó divino sal, e divina luz do Sacramento? Saboreai como sal estas línguas, alumiai como luz estes depravados olhos. Sarai estas línguas como sal, posto que línguas tão sacrílegas mais mereciam salmouradas; alumiai estes olhos como luz, posto que olhos tão descompostos mais mereciam ser cegos.

sábado, junho 06, 2015

Sacris Solemniis


Sacris Solemniis




Este é um dos cinco belos hinos que S. Tomás de Aquino (1225-1274) compôs em honra do Santíssimo Sacramento, a pedido expresso do Papa Urbano IV (1261-1264), quando o Papa instituiu a festa do Corpus Christi, em 1264. Hoje, Sacris Solemniis é usado como hino de Matinas, na festa do Corpus Christi, no Breviário Romano, ou do Ofício de Leitura, na celebração do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, na Liturgia das Horas. As duas últimas estrofes são o texto do hino Panis Angelicus.





Já esta gravura ilustra um outro texto da festa do Corpus Christi: a sequência Lauda Sion Salvatorem, hoje facultativa, no Missal de Paulo VI.



Agora a tradução (da Liturgia das Horas), do hino Sacris Solemniis


C
antemos com alegria
A grande solenidade,
Brotem do fundo da alma
Cânticos de piedade.
Desapareça o que é velho,
Tudo seja novo em nós:
As obras e os corações,
O grito da nossa voz.

Neste dia recordamos 
Aquela noite de luz,
Em que, na Última Ceia, 
Aos seus irmãos deu Jesus 
O cordeiro e o pão ázimo 
Segundo os ritos legais 
Que o Senhor na antiga lei 
Ensinara a nossos pais.  

Aos fracos e esfomeados 
Deu o seu Corpo a comer, 
E aos tristes, fonte de vida,
Deu o seu Sangue a beber, 
Dizendo-lhes: Recebei 
Este cálix que Eu vos dou,
Bebei todos deste Sangue
Que do meu peito jorrou. 

Assim Ele instituiu
O sacrifício do altar,
Dando só aos sacerdotes
O poder de consagrar;
Aos seus ministros compete
Tomar seu Corpo nas mãos,
Comungá-lo e reparti-lo
Por todos os seus irmãos.

Pão dos Anjos, Pão do Céu,
Feito pão das criaturas,
Ó celeste Pão divino
Que vens pôr termo às figuras!
Oh maravilha! O escravo,
O humilde, o pobrezinho,
Come o Corpo do Senhor,
Faz dele o Pão do caminho!

Ó Divindade una e trina,
Vossos filhos Vos imploram:
Visitai os corações
Que prostrados Vos adoram;
E pelos vossos caminhos,
Por onde os homens chamais,
Levai-nos à luz eterna,
Aonde Vós habitais.

E agora o texto latino:


S
acris solemniis
iuncta sint gaudia,
et ex praecordiis
sonent praeconia;
recedant vetera,
nova sint omnia,
corda, voces, et opera.

Noctis recolitur
cena novissima,
qua Christus creditur
agnum et azyma
dedisse fratribus,
iuxta legitima
priscis indulta patribus.

Post agnum typicum,
expletis epulis,
Corpus Dominicum
datum discipulis,
sic totum omnibus,
quod totum singulis,
eius fatemur manibus.

Dedit fragilibus
corporis ferculum,
dedit et tristibus
sanguinis poculum,
dicens: Accipite
quod trado vasculum;
omnes ex eo bibite.

Sic sacrificium
istud instituit,
cuius officium
committi voluit
solis presbyteris,
quibus sic congruit,
ut sumant, et dent ceteris.

Panis angelicus
fit panis hominum;
dat panis caelicus
figuris terminum;
O res mirabilis:
manducat Dominum
pauper, servus et humilis.

Te, trina Deitas
unaque, poscimus:
sic nos tu visita,
sicut te colimus;
per tuas semitas
duc nos quo tendimus,
ad lucem quam inhabitas.